quinta-feira, 26 de junho de 2014

DEPRESSÃO E EXPRESSÃO DA DEPRESSÃO CONTARDO CALLIGARIS


Sorria!

São dias de sentimentos intensos e espetaculares. Os jogadores cantam o hino nacional como se estivessem na hora do sacrifício supremo pela liberdade, pela independência ou coisa que valha.
No estádio, os torcedores exultam, sofrem, rezam. Claro, eles sabem que a televisão espreita suas manifestações e exageram para ser escolhidos, aparecer e mandar beijos para quem ficou em casa.
De qualquer forma, a expressão teatral dos sentimentos sempre me deixou perplexo. Quando era criança pequena, a cada vez que o adulto que estava comigo se irritava além da conta ou se desesperava ou mesmo declarava seu amor a outro, eu me sentia inseguro e desamparado porque ficava com a impressão de que, justamente, não havia mais adulto para cuidar de mim.
Mais tarde, adolescente, achava que expressar sentimentos de maneira excessiva fosse, antes de mais nada, sinal de vulgaridade. Hoje, adulto, suspeito que, em grande parte, afetos e sentimentos sejam produzidos por sua própria expressão.
Ou seja, não é que você fala "te amo" porque está apaixonado; é que você se apaixona à força de dizer "te amo" a cada cinco minutos. Não é que você chora e arranca o cabelo porque está desesperado, é que você se desespera à força de chorar e arrancar o cabelo. Você duvida?
Pois bem, encontrei uma confirmação de minha teoria. Em "O Demônio do Meio-Dia", Andrew Solomon conta a história de sua depressão e das mil experiências e leituras que o ajudaram a atravessá-la.
O livro estava esgotado -e é uma pena, pois ele é uma presença amiga para qualquer deprimido. Uma nova edição brasileira chega às livrarias em julho, antes que Solomon venha ao Brasil, para a Flip.
Para essa reedição (Cia das Letras), Solomon escreveu um longo epílogo, no qual ele apresenta o que aconteceu de novo desde a saída do livro, em 2001, tanto na sua própria luta contra a depressão, quanto nas pesquisas, médicas e alternativas.
Foi graças a esse epílogo que conheci um conjunto de pesquisas recentes, a última das quais, de Rosenthal e Finzi, foi publicada em maio deste ano, no "Journal of Psychiatric Research" (http://migre.me/k00lW).
Setenta e quatro pacientes diagnosticados com depressão maior foram divididos em dois grupos iguais: um foi tratado com uma injeção de Botox nos músculos da face que produzem a expressão de preocupação e de tristeza, o outro (grupo de controle) recebeu uma injeção no mesmo lugar, mas de solução salina.
Testes repetidos de três a seis semanas mais tarde mediram a depressão dos pacientes segundo várias escalas e chegaram a resultados consistentes: por volta de 50% dos que foram tratados com Botox melhoraram substancialmente.
No grupo de controle, isso aconteceu com uma percentagem de pacientes (de 12% a 20%) menor da que geralmente melhora com a administração de um placebo. A pesquisa de Rosenthal e Finzi repete pesquisas anteriores, que tiveram resultados análogos (http://migre.me/k03kK; http://migre.me/k03ny).
Ou seja, em caso de depressão, uma aplicação de Botox nos músculos corrugador e prócero é tão eficiente quanto os antidepressivos de segunda geração (se não mais). Amigos dermatologistas, não percam essa!
Constatação: a incapacidade de produzir um semblante triste e preocupado produz uma melhoria de humor. É a confirmação do famoso "sorria!", não só para a foto, mas porque sorrir traria alegria. E é sobretudo a confirmação de minha teoria: os afetos são produzidos (ou, no mínimo, exacerbados) por sua expressão.
Previsão: se a moda pegar, visto que a cultura nos pede alegria e felicidade, acabaremos todos adotando o banho de ácido que tornou o Coringa (personagem de "Batman") para sempre sorridente.
Como é frequente, a verdade deve estar no meio: os afetos produzem expressões, e as expressões produzem (e reforçam) os afetos que as produziram. Para entender, sem nem investigar os laços entre mente e corpo, basta considerar o óbvio: nossa própria imagem influencia nosso humor.
Qualquer fisioterapeuta sabe que uma mudança na postura corporal pode mudar nosso jeito de encarar o dia e a vida.
Solomon cita também um artigo do "New York Times" que comenta as pesquisas que citei. Esse artigo termina com a seguinte observação: administrando Botox a inúmeras mulheres (aparentemente, contra as rugas e os estragos do envelhecimento), talvez os dermatologistas tenham tratado legiões de potenciais deprimidas, que estão hoje muito melhor. 


contardo calligaris
Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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